domingo, janeiro 04, 2009

O transporte coletivo como ferramenta para construção da cidade-modelo


Na perspectiva de entendermos e explicarmos a construção do mito da cidade-modelo, estudar a história do transporte coletivo em Curitiba é parte essencial desse processo.

Na década de 50, em todo Paraná, ocorria um processo de urbanização que, privilegiando o grande capital, gerou a expulsão de milhares de pessoas de suas terras – estas que não tiveram outra escolha senão buscar emprego nas cidades. Assim, a partir da mecanização agrícola e da concentração de terras, grandes massas de pobreza ocuparam o espaço urbano.

Talvez o caso mais explícito da relação entre a urbanização excludente de Curitiba e o transporte coletivo seja a criação do Plano Diretor – um plano de urbanização desenvolvido logo após o golpe militar de 64, criado pelo escritório do arquiteto paulista Jorge Wilheim.

A partir desse modelo de urbanização, basicamente, excluía-se o investimento às áreas mais empobrecidas em detrimento do investimento maciço às áreas mais centrais. Curitiba, portanto, cresceu e se desenvolveu de um modo minuciosamente planejado e não natural. Um exemplo disso é o fato de que, na época, foram falsificados documentos mostrando que a região sul (chamada de modo mais amplo como “boqueirão”) era um grande vazio demográfico – e que, portanto, não era necessário direcionar investimentos para lá.

Como uma extensão dessa lógica surgiram os chamados Eixos Estruturais de Desenvolvimento, que basicamente delineavam a cidade-modelo na área central da cidade (em uma orientação nordeste-sudeste), deixando as regiões periféricas não só sem os investimentos necessários, mas também fora do marketing que se criava em cima da cidade-modelo.

Esses eixos acompanhavam a criação dos ônibus biarticulados e a construção das vias trinárias, captando gigantescos investimentos. Hoje podemos evidenciar que essa idéia inovadora, de longas canaletas de ônibus cercadas por imensos edifícios estéticos, espetaculariza o espaço da cidade-modelo – reforçando os seus rótulos ilusórios (capital social, cidade-sorriso, cidade européia, etc.) e mascarando a pobreza urbana de uma maneira bem eficaz.

Desse modo se consolidou em Curitiba um modelo de transporte coletivo muito propício à construção do mito da cidade-modelo, que inclusive é orientado prioritariamente pelas demandas da classe média – as classes B e C, juntas, respondem por mais de 70% das viagens de transporte coletivo. Já as classes mais empobrecidas deixam de usá-lo, privilegiando as viagens a pé e tendo a sua mobilidade urbana substancialmente reduzida, e como uma conseqüência óbvia, reduzindo também sua renda e a própria mobilidade social.

Fica claro que a segregação espacial (como um fragmento desse projeto urbanístico planejado) vem a privilegiar as elites e a classe média. Inclusive no sentido de poupar o seu tempo – já que o tempo que o trabalhador pobre permanece no ônibus é de no mínimo 20 minutos a mais do que o de classe média.

Outro aspecto perverso do transporte coletivo é o aumento abusivo da tarifa do ônibus. De 1994 para cá a tarifa subiu uma taxa de quase 400% – de R$ 0,40 para 1,90 – enquanto a inflação no mesmo período subiu cerca de 230%. O aumento foi justificado por dois fatores: O aumento do custo por km rodado e a redução do IPK (Índice de Passageiros por km rodado).

Como em todo negócio no capitalismo é interessante agregar valor a mercadoria que está sendo vendida, pode-se dizer que o aumento no custo por km rodado foi interessante às empresas de ônibus, pois o seu produto (no caso o direito público de ir e vir) passou a valer mais no mercado – por mais contraditório que isso possa soar.

Ainda: a redução na taxa do IPK, o que implica em ônibus mais vazios, em nada afetou a lucratividade das empresas de ônibus, pois a URBS as paga por km rodado. Aliás, a URBS tem proporcionado historicamente a essas empresas a facilidade de que nunca sairão no prejuízo, pois as empresas saem sempre lucrando independentemente da quantidade de usuários do sistema de transporte coletivo – isto é, a empresa lucrará igualmente mesmo se um ônibus estiver circulando vazio. Ela tem se configurado, portanto, como um órgão do Estado que vem legitimar a exploração privada sobre um serviço público.

Contudo, já na década de 80, vários movimentos sociais surgiam em Curitiba (acompanhando uma tendência nacional), refletindo na especificidade de Curitiba, a iniquidade do projeto da cidade-modelo. A nós é interessante pegar o exemplo do MAB – Movimento das Associações de Bairro. O MAB auferiu diversas conquistas, entre elas a instalação dos terminais de ônibus – substituindo os chamados “chiqueirinhos”, que eram espaços que amontoavam as pessoas à espera da condução.

Mas um ponto interessante na história da consolidação da exploração privada sobre o direito de transporte público ainda não foi abordado: o cálculo da tarifa. Dentre as conquistas do MAB estava um estudo feito sobre o cálculo tarifário, onde a partir dele (tendo inclusive acesso a planilhas de empresas de outros estados, como a CMTC de SP) foi avaliado que a tarifa se encontrava superestimada e que não correspondia a um valor “justo” a ser pago pela população.

Avaliamos hoje que as empresas de ônibus que exploram o serviço do transporte coletivo em Curitiba nunca prestaram contas de fato à população. A relação da URBS com as empresas de ônibus é tão sombria que até hoje a URBS se recusa a disponibilizar ao povo as planilhas de custo do sistema de transporte em Curitiba, mesmo se tratando de um serviço (teoricamente) público. Existe muita especulação de que há superfaturamento nos cálculos que são prestados à URBS, o que é reforçado pelo fato de que toda informação sobre os custos é retirada a partir de notas fiscais apresentadas pelas próprias empresas. Outra grande sombra está sobre o próprio processo do cálculo da tarifa, que certamente custa muito ao usuário do transporte coletivo. Para se ter uma idéia, podemos pegar o exemplo do governo Luiza Erundina na prefeitura de SP, no início da década de 90, quando foi estimado que 25% do total dos custos do sistema de transporte eram causados apenas pelo cálculo e processamento da tarifa.

Posto tudo isso, o MPL Curitiba se articula como uma resposta a esse sistema de transporte excludente: lutando pela desmercantilização do transporte coletivo e pelo pleno direito de ir e vir. Para tanto buscamos não só desconstruir o mito da cidade-modelo, mas também se inserir socialmente para construir junto ao povo uma luta legítima por um transporte coletivo mais eqüitativo.

Um comentário:

Anônimo disse...

texto bom