
O movimento pelo transporte poderia ser analisado por vários ângulos, posto que pleno de sentidos sociais, políticos, culturais, econômicos. Aqui priorizo olhá-lo pelo enfoque político,dimensão através da qual os atores implicados mais fortemente se puseram em cena, dando corpo à disputa de interesses variados.

Primeiramente, entendo que as manifestações ocorridas, embora com existência própria e marcadas por especificidades, não podem ser vistas apartadas do Movimento Passe Livre-MPL, há algum tempo, campo de militância de alguns segmentos estudantis do Brasil. Vejo estreita correspondência entre a cultura política consolidada nas manifestações do MPL de Salvador, de Florianópolis e outras capitais e os contornos obtidos pelo #Contraoaumento de Teresina. Existe um nexo, um fio que articula a luta dos jovens e penso, inclusive, que é desse ponto de vista que deve ser olhado, por exemplo, o significado político maior da demanda básica da luta posta na rua: a redução do preço da passagem do ônibus.

Demandar o direito de não pagar a passagem - ou de ter o seu preço estabelecido em patamares toleráveis - remete-nos imediatamente a um direito civil básico do pacto social estabelecido numa democracia, que é o direito de ir e vir. Nossa Constituição Federal consagra como livre o direito de locomoção. Sabemos, por outro lado, que na realidade das grandes cidades, das sociedades complexas a operacionalização desse direito implica em que uma série de condicionantes seja atendida, tais como a indispensável disponibilidade de meios para torná-la possível quando a locomoção situa-se para além da capacidade física de cada um. Desse modo,questionar o preço da passagem é, antes, questionar até que ponto a fruição deste direito se mostra real, factível nos termos vivenciados em nossa ociedade; é questionar a existência concreta da suposta liberdade de ir e vir.

Na luta empreendida, os jovens apontam modelos de política que viessem a atender suas necessidades atuais: negam para si a assunção do ônus do transporte por se reconhecerem

As juventudes parecem cobrar das instituições o cumprimento cabal de suas responsabilidades, aclarando os campos de luta e rompendo, nesse sentido, a perspectiva de adequação à política hegemônica de Estado. Desse modo, assumem-se como pessoas em formação e afirmam, na participação política de resistência, a condição de sujeitos dos seus próprios destinos.
Por outro lado, os jovens passaram a colocar sob suas miras o capital. A cobrança direta que fazem dos setores privados introduz aos levantes uma característica nova em relação aos movimentos sociais juvenis de décadas atrás, os quais focavam apenas o Estado como interlocutor e adversário político. Adotar, numa luta concreta, o capital como adversário direto coloca o movimento pelo transporte em aproximação com os movimentos juvenis mundiais contemporâneos,os quais – organizados sob as mais diferentes maneiras – se insurgem contra outras expressões do capital, presentes nesse novo mundo que povoamos. O enfrentamento de questões relativas à exclusão social, tão crônicas e triviais para nós, no Brasil e no Piauí, se expressa nas ruas a partir de uma nova leitura, extensiva ao coletivo local e estimulada pelos movimentos mundiais e nacionais de resistência ao capital sem pátria e igualmente virulento.
Até onde consigo ver, os agentes privados têm decodificado perfeitamente o sentido das lutas e têm organizado sua reação à altura do risco urdido pela audácia juvenil. Só por essa razão poderemos compreender a força repressiva que se alastra sobre os jovens de Teresina e do Brasil afora. É a defesa intransigente de um território comum e “intocável”, onde estão blindados políticos e seus interesses eleitorais x empresários beneficiários de gestões apartadas dos interesses sociais básicos, ambos orquestrando a manutenção do establishment.
Valéria Silva - É Doutora em Sociologia Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia-PPGAArq-UFPI. Membro do Núcleo de Pesquisa sobre Crianças, Adolescentes e Jovens-NUPEC-UFPI.
fonte: http://www.acessepiaui.com.br/vc-no-acesse/as-juventudes-o-contraoaumento-e-a-pol-tica-dos-novos-tempos/13351.html
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