sexta-feira, março 24, 2006

A Guerra da Tarifa

http://www.midiaindependente.org/es/red/2004/07/286542.shtml

I

Muitos documentários logo serão produzidos, e provavelmente livros serão publicados, sobre aquilo que foi – ou está sendo – a maior revolta e movimento popular desde que esta cidade passou a ser chamada de Florianópolis. Embora ainda paire uma incerteza sobre a conquista da reivindicação central deste levante popular, pretendo aqui fixar as palavras no papel eletrônico antes que se percam da minha memória, sem a ambição de fazer qualquer análise ou relato detalhado do que aconteceu nessas duas últimas semanas.


Foi a maior revolta ou movimento popular da história das últimas oito décadas desta cidade porque conciliou quantidade (adesão), formas contundentes de ação direta e um certo nível de organização e consciência. Uma revolta que não se expressou em simples fúria, que se esgota em si mesma, mas sim principalmente na forma de um movimento organizado horizontalmente, multifacetado, ligando principalmente, mas não somente, associações comunitárias e estudantes.


Para entender a gênese desse “movimento contra o aumento das tarifas de ônibus”, sem irmos muito longe, teríamos que destacar a situação atual do transporte coletivo em Florianópolis e o contexto político em que ele se estabelece, assim como as atividades que vem desenvolvendo algumas associações comunitárias e principalmente a Juventude Revolução Independente (JRI) e a Campanha Pelo Passe Livre, puxada pela JRI há quatro anos.


Do Buzu à Revolta


Era o dia 5 de março deste ano, e fui ao Centro Integrado de Cultura (CIC) assistir o vídeo A Revolta do Buzu, que seria exibido naquela noite, atração principal do lançamento da Campanha pelo Passe Livre 2004 (veja fotos e matéria sobre o evento de lançamento em http://www.sarcastico.com.br/1pags/arq_capa/passelivre2004.php). O documentário tratava da revolta, primordialmente estudantil, que paralisou Salvador por três semanas contra o aumento da tarifa de ônibus. Revolta essa que teve um caráter autônomo, apartidário, sem líderes...
Cerca de quarenta pessoas estavam naquela sala, naquele dia. Não poderia imaginar que aquelas pessoas ali, boa parte com cerca de metade da minha idade, iriam pôr a cidade de pernas para o ar alguns meses depois, ou serem tão fundamentais para tudo que ocorreu nas duas últimas semanas em Florianópolis.


Após a exibição do vídeo, discussão sobre as insuficiências do movimento de Salvador, dos seus erros e acertos, e do porquê não terem conseguido alcançar a reivindicação central que era baixar a tarifa de ônibus. Em linhas gerais, o que se poderia concluir é que faltara um certo nível de organização. A experiência de Salvador deixou claro também que o movimento deveria estar muito atento a indivíduos politiqueiros, principalmente de organizações estudantis, que pretendem se passar por representantes do movimento (e que muitas vezes caem de pára-quedas depois que o povo já está nas ruas), pois em seu nome eles acabam negociando em gabinetes propostas totalmente estranhas à vontade popular. Depois do dia 5 de março A Revolta do Buzu seria passado em escolas de toda Florianópolis e a JRI/Campanha pelo Passe Livre se esforçaria como nunca para organizar e criar esse momento.

Em junho de 2003 a JRI fizera uma análise da situação político-social em Florianópolis, que orientou seus esforços futuros:

“Hoje em dia uma das grandes formas de arrecadação de capital “legal” e sob a exploração de operários e da população, é o transporte coletivo privado, ilegal, feito sem licitação, sem transparência, favorecendo as empresas ligadas à família Amin que estava no poder - o marido no Governo do Estado a esposa na prefeitura. Com poderes no aparelho de Estado, nas instituições políticas, na justiça, os donos do transporte coletivo criaram todas as condições “legais” para super-explorar o transporte da cidade, um dos mais caros do mundo! Esse tipo de situação esmaga a população e provoca grande indignação de amplos setores que fazem utilização do transporte coletivo. Nesses últimos três anos levamos a campanha do passe-livre que foi um importante primeiro passo, no sentido de enfrentar os donos do transporte coletivo. Hoje estamos aptos a pressionar essa reivindicação até a vitória. Se pretendemos realizar uma atividade militante focada, é contra esse setor que devemos concentrar nossos esforços. É na luta contra o transporte municipal que poderemos incendiar a população contra os setores mais atrasados, oligárquicos que se mantêm na condução e na divisão da exploração:

- Guerra aos exploradores do transporte coletivo em Florianópolis;
- Mobilização e paralisação no dia da inauguração do Sistema Integrado, e de um possível reajuste;
- Levantar a discussão do transporte coletivo municipal e público, sob o controle do Estado”.

A guerra da tarifa que ocorreu nas últimas semanas em Florianópolis não foi mero fruto de espontaneísmo. Ele é sempre um componente de qualquer revolta ou levante popular, mas sem encontrar uma organização, a revolta e o espontaneísmo se perdem em ações e protestos isolados. Foi o esforço de organização e a preparação a que se dedicou a JRI principalmente, em especial no último ano, que possibilitou que a revolta e indignação popular pudessem encontrar uma articulação e ter continuidade de modo a pôr em xeque a prefeitura e impedir o aumento da tarifa.

O trecho da JRI acima transcrito praticamente resume o que se precisa saber sobre a situação do transporte coletivo em Florianópolis e o contexto político em que ele se dá. Acrescentemos ainda que a prefeita Ângela Amim é sócia da maior empresa de transporte urbano da cidade (fato que nenhum órgão da imprensa burguesa jamais pontuou em toda essa discussão). Uma oligarquia comanda Florianópolis e Santa Catarina há várias décadas, formada durante a ditadura militar, e que ao mesmo tempo é envolvida com uma verdadeira máfia que controla o transporte coletivo, que elege políticos, e que funda o principal poder econômico da cidade. Em agosto de 2003 foi inaugurado um novo sistema de transporte coletivo na cidade, com vários terminais construídos, e que se quer integrado. Além da tarifa ter aumentado na sua inauguração, o sistema claramente foi projetado para racionalizar os custos e aumentar os lucros das empresas, sem consideração pelo tempo e conforto do usuário, chegando ao absurdo de ter sido implementado baldeação em linhas que anteriormente eram diretas, para bairros próximos ao centro. Descrever todos os absurdos, do ponto de vista do usuário, do novo sistema de transporte ocuparia algumas páginas. Já na sua inauguração houve alguns protestos, ônibus queimados aqui e acolá, terminais fechados acolá e aqui, mas nada que tenha ido além de conseguir que algumas linhas voltassem a operar. Faltara talvez um grande chamado, um grande esforço preparatório, algo que desse uma cara de movimento, algo a que se identificar e uma articulação...

A revolta contra o atual aumento da tarifa liberou também a revolta acumulada contra o novo sistema de transporte. Quanto ao preço, para se ter uma idéia, mesmo com a tarifa tendo voltado ao valor anterior, muitos trechos de até dez ou doze quilômetros são percorridos de forma mais barata de carro (preço de um litro de gasolina) do que de ônibus, mesmo com apenas uma pessoa no carro!!!


A JRI

A Juventude Revolução Independente surge da desvinculação da Juventude Revolução de Florianópolis com a corrente trotskista O Trabalho e com o próprio PT. A JRI passa a ter uma postura apartidária, autonomista e libertária (alguns exemplos disso são sua postura diante do sistema eleitoral, a prática do consenso ao invés do centralismo democrático, e uma postura ética infelizmente rara na extrema-esquerda). A própria percepção da impossibilidade de mobilizar a juventude a partir de concepções bolcheviques a levaram a se distanciar dessas concepções. Hoje, a JRI não se define como trotskista, leninista, marxista, ou anarquista... mas simplesmente como revolucionária. Em certo sentido, a guerra da tarifa mostrou a capacidade e a adequação de concepções políticas e organizativas historicamente associadas ao anarquismo. Isso é claramente percebido até por bolcheviques locais. Nenhum partido ou organização bolchevique teria conseguido preparar, fomentar e catalisar tal mobilização, principalmente em meio à juventude.

Os filhos de comunistas, ao voltarem para casa depois de um dia de manifestação, invariavelmente tinham que ouvir broncas de seus pais leninistas, com coisas do tipo: “que merda vocês estão fazendo! Falta direção...! Parece coisa de anarquista!”.

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