domingo, agosto 24, 2008

Um esboço da História do Transporte em Curitiba

A História do Transporte Coletivo em Curitiba tem de ser contada, necessariamente, sob o ponto de vista dos/as usuários/as e de sua luta por melhorias e transformações. No modo como as pessoas, coletivamente organizadas, questionaram a maneira como o transporte se estruturou, isto é, no privilégio político e econômico de alguns grupos empresariais. O Movimento Passe Livre Curitiba compreende que é absolutamente necessário que conheçamos toda essa história para podermos balizar nossa intervenção de maneira coerente e continuada, jamais se esquecendo da história da qual somos, ao mesmo tempo, produtos e agentes. Conhecendo essa história poderemos criticar melhor as ações dos empresários/prefeitura e superar antigos métodos de luta e organização que nos antecederam. Vamos à história.

Na década de 50, o transporte coletivo em Curitiba ainda era feito por vários condutores individuais, sem regulamentação e sem um projeto comum de transporte. É nessa época que a prefeitura inicia seu primeiro projeto de transporte, que consistiu em selecionar “áreas seletivas” de exploração do transporte (imagine o mapa de Curitiba com raios saindo do centro e dividindo a cidade como um gráfico de pizza e terá construído uma noção do que são as tais “áreas seletivas”) para impedir que os empresários somente se dedicassem a áreas lucrativas – ao mesmo tempo que concedia aos empresários territórios da cidade aos quais eles tinham primazia política e jurídica para explorar. Além disso, a prefeitura criou critérios técnicos mínimos para prestação do serviço, o que incentivou a concentração dos vários empresários de lotações, o que, no mesmo sentido, gerou cooperativas que por sua vez formaram as atuais empresas. Ou seja, os vários condutores foram extintos em razão de um modelo de transporte de maior capacidade técnica, que teria várias implicações políticas. A maior implicação foi o aumento, ou melhor, a criação o poder político dos empresários. Inclusive é nessa época que é formado o sindicato dos empresários.

Esse poder político adquirido pelos empresários se traduziu em algumas tensões com a prefeitura, como um lock-out (greve patronal) dos ônibus, ainda na década de 50, que logrou como principais conquistas aos donos das empresas uma metodologia de cálculo tarifário favorável à lucratividade do setor de transporte, um prazo maior de permissão de exploração (15 anos) e a manutenção das áreas seletivas de exploração sob caráter “intocável” – o que até hoje não foi revisto.

Simultaneamente a esse processo, como duas linhas que caminham juntas mas ainda não se tocam, o Brasil, e o Paraná em especial, passavam por um brutal processo de urbanização. Para resumir um tema complexo, a mecanização somada à concentração da terra expulsavam enormes contingentes de pessoas do campo para a cidade. Em Curitiba, a maior manifestação desse processo foram as ocupações urbanas que ocorreram em grande número. Quer dizer, as pessoas expulsas do campo eram obrigadas a encontrarem um lugar para viver e viam-se na necessidade de ocupar territórios em nome da própria sobrevivência[1].

Em Curitiba, com a nomeação de Jaime Lerner, indicado pela ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir de 1964, começa um processo de “modernização” do transporte.Vale notar, esse período do Brasil, no tocante ao desenvolvimento econômico, é conhecido como uma época de “modernização conservadora”, isto é, modernização tecnológica e industrial seguida de exclusão das classes populares da política. Portanto se trata de uma modernização vinda e planejada pelo alto[2], pelas classes dominantes impondo um projeto de país e de cidade. Esse o quadro no qual ocorreram algumas mudanças significativas no transporte. As principais, introduzidas por Lerner, foram duas: um novo conceito de ônibus, articulado ou biarticulado, e a implantação das canaletas de ônibus, nas quais esses ônibus expressos passaram a se deslocar. Os novos ônibus foram adquiridos com financiamento do BNDES[3], adquiridos com a influência da prefeitura para propriedade dos empresários. Mostrava-se já a relação entre poder público e empresários do transporte, cuja marca principal foi – e é – a manutenção de privilégios historicamente obtidos. A envergadura dessas mudanças, entretanto, foi incapaz de alterar – até porque essa não era a preocupação – o princípio segundo o qual a tarifa, em sua integralidade, deveria continuar a ser financiada pelos/as usuários/as.

A partir da década de 80 começa a se modificar essa situação na medida em que há um despertar dos movimentos sociais, no Brasil e em Curitiba. Os sujeitos sociais forjados nas lutas pela moradia seguem, como em um movimento contínuo, na luta por transporte, o passo seguinte para uma vida mais digna. O Movimento Popular da época, organizado nas Associações de Bairro e nas Pastorais da igreja, passa a questionar os mecanismos pelos quais é conduzida a política do transporte coletivo. Além disso, o movimento atuava em duas frentes principais: a luta pelo passe-trabalhador e o questionamento da metodologia do cálculo tarifário.Vale lembrar que por dentro do Movimento Popular, no entanto, começaram a se destacar alguns militantes ambiciosos, como o então advogado Roberto Requião, que se elegeria deputado e depois prefeito.

O Movimento Popular seguia pressionando e obteve conquistas importantes que não podem ser esquecidas, como a participação no Conselho Municipal de Transporte, o órgão municipal que definia a política do transporte, a contratação de 90 fiscais do movimento popular para checar as irregularidades do transporte – que, como já se desconfiava, eram muitas. Até mesmo a construção dos terminais de ônibus pode ser tributada à ação organizada do Movimento Popular, pois antes dos terminais as pessoas ficavam em pequenos espaços, submetidas a um espaço incapaz de comportá-las, que ficaram conhecidos como “chiqueirinhos”, substituídos pelos terminais posteriormente. Graças à pressão política do Movimento Popular algumas mudanças foram efetuadas, como a alteração do contrato das empresas de ônibus (de concessionários passaram a ser permissionários, aumentando a possibilidade de controle público), a constatação da irregularidade das planilhas, por meio dos fiscais do Movimento Popular, e a criação de uma frota pública – que, no limite, serviria para banir a iniciativa privada do transporte. No entanto, mesmo após a constatação das irregularidades da planilha, a passagem não diminuiu, pois o dinheiro a mais passou a ser investido na frota pública.

Essas mudanças aconteceram na gestão de Requião. No entanto, o prefeito da época também ajudou na desmobilização do Movimento Popular na medida em que aumentou o Conselho de Transporte a ponto de impedir a possibilidade de quórum, de modo que o Conselho se tornou um órgão fictício[4].Além disso, Requião passou a pagar as empresas, por meio da URBS, por quilômetro rodado, o que criou uma relação promíscua entre o público e o privado, transformando a prefeitura no principal financiador do transporte, embora isso não tenha se traduzido em controle político. As mudanças que vieram para bem e foram fruto de anos de luta do Movimento Popular foram desfeitas na gestão seguinte de Jaime Lerner, ao passo que as nocivas foram conservadas.

Na história recente de Curitiba, através da gestão de Beto Richa se consolida uma política de “contenção” cujo centro de força consiste em um aprofundamento da relação espúria entre o público e o privado. Explicamo-nos: a política de congelamento da tarifa em Curitiba ocorre por meio de investimentos pesados do Estado – no caso a prefeitura – no transporte coletivo. Mas qual o problema disso? Não é dever dos governos ajudar na manutenção do transporte? Certamente, no entanto, a relação de manutenção é feita de maneira a consolidar a exploração privada e preservar a lógica do lucro no transporte, pois os investimentos públicos servem apenas para manter a taxa de lucro dos empresários, senão maior, invariável. Ou seja, um setor privado, que nunca foi licitado (ou seja, nunca sofreu concorrência pública para a escolha do melhor serviço), é agraciado com dinheiro público para congelar a tarifa. A “domingueira” é resultado da mesma política.

Da perspectiva do MPL, isso implica em continuar com a relação básica que estrutura a gestão do transporte em Curitiba: a lógica do lucro prevalecendo sobre o direito de ir e vir. Desse modo, o Estado aparece como apenas mais um sócio da iniciativa privada ou como o “comitê dos negócios dos endinheirados de sempre”. No entanto, essa política de “contenção” apresenta fissuras: a qualidade do transporte diminuiu sensivelmente para manter o congelamento da tarifa. Os ônibus estão super-lotados a ponto de, por exemplo, em Almirante Tamandaré, na semana entre 10 e 17 de abril de 2008, haver acontecido duas depredações de ônibus causadas por condições de qualidade miseráveis.

Os sujeitos sociais da década de 80 não são os mesmos. No entanto, qualitativamente, a luta também se modificou. Hoje a crítica ao modelo urbanístico pode ser amplificada por meio da discussão por transporte. Afinal, quem precisa de tantos carros nas ruas? Porque a cidade tem de ser planejada por técnicos a serviço das elites locais quando quem verdadeiramente vive na cidade é quem deve decidir sobre as mudanças? Mais: a desmercantilização do transporte não implicaria em um modelo urbano que privilegiasse o coletivo sobre o individual? Nos grandes e médios centros urbanos, não é o transporte a principal ferramenta de mobilidade urbana e sua modificação de caráter, do privado para o público, não permitiria milhares de pessoas possuírem o direito à cidade?

Ainda são perguntas cujas respostas estão em aberto. Dependem a ação coletiva das pessoas. Nos ajude a escrever as próximas páginas da luta por transporte em Curitiba.



[1] Até hoje a situação no campo é terrível e aos trabalhadores rurais não são dadas alternativas a não ser irem para as cidades viver em condições precárias. A resistência desse processo foi a constituição, na década de 80, do Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST.

[2] Para se ter uma idéia, o Plano Diretor que guiou e definiu as diretrizes do transporte em Curitiba ocorreu em 1965, um ano após o golpe, portanto.

[3] Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. É um banco estatal brasileiro cuja finalidade é financiar diversos setores da economia em um prazo maior e com menores juros. Chega a ser maior que o Fundo Monetário Internacional (FMI).

[4] Não só isso, uma das razões da desmobilização do Movimento de Transporte da década de 80 é a conquista do Vale-Transporte ou Passe-Trabalhador, em 1985. Essa conquista permitiu a milhares de trabalhadores terem 6% dos seus salários descontados para pagar seu transporte, o restante tendo de ser pago pelo capitalista contratante. Antes do Passe-Trabalhador, os trabalhadores chegavam a gastar 30% dos seus salários em transporte.

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