segunda-feira, outubro 05, 2009

Aspectos da história do transporte em Curitiba


1. Lutas sociais pelo transporte: uma breve introdução

Nos últimos anos, especialmente a partir de 2003, intensas lutas têm sido travadas em torno da questão do transporte coletivo em diversas cidades do Brasil . Tais lutas refletem especialmente dois aspectos: o caráter de classe do serviço de transporte dentro da sociedade capitalista e a crise de seu modelo atual de exploração.

Iniciando uma breve análise, parte-se do seguinte pressuposto: se existem lutas sociais, é porque existem conflitos sociais; e se existem conflitos sociais é porque as diferentes classes estão em permanente antagonismo. Logo, surge a dúvida: quais são então os atores em disputa?

De forma simplificada podemos dizer que são os usuários e trabalhadores do sistema, os empresários, e os gestores estatais. Pela dinâmica contraditória e complexa da questão, em determinados momentos os interesses de cada setor podem se aproximar e em alguns até mesmo se conjugar, mas isso sempre de forma efêmera e transitória, pois são incompatíveis.

O caráter de classe reflete-se na forma como o transporte coletivo é organizado e ofertado na sociedade capitalista. Transformado em mercadoria, sua lógica não pode ser outra senão a lógica do lucro, que rege as relações entre usuários (consumidores), empresários (vendedores), empresários (patrões) e trabalhadores do sistema (empregados). Assim, o deslocamento dentro das cidades transforma-se em produto e a (i)mobilidade urbana reflete essas relações socialmente determinadas.

Mais do que uma questão de ordem técnica, como é apresentada pelos gestores e pela tecnocracia dominantes, também de acordo com seus próprios interesses, o transporte coletivo e seu atual quadro de crise têm um caráter eminentemente político e é só por meio desse prisma que o problema pode ser solucionado.

Nesse quadro, lutar pelo direito ao transporte – o que pode configurar-se em lutas pela redução da tarifa, ou mesmo contra a existência dela, mas também por melhorias na qualidade do serviço – significa lutar pela liberdade, pelo direito à cidade em oposição ao controle do espaço público.

Feitas essas curtas e sintéticas colocações, cabe-nos agora falar da crise do atual modelo de exploração do transporte coletivo. Trataremos desse tema de forma bastante genérica e esquemática, simplificando propositalmente seu vasto conteúdo.

Ao contrário do que se pode pensar, não é de hoje que o problema do transporte tem gerado grandes revoltas populares.

Entre 28 de dezembro de 1879 e 1º de janeiro de 1880, a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada Revolta do Vintém, protesto popular de imensa radicalidade contra a cobrança de vinte réis (ou seja, um vintém) nas

passagens dos bondes. Em Salvador, na época de 1930, realizaram-se protestos contra os maus serviços e

tarifas altas, trabalhadores colocaram fogo em 60 bondes da Cia. Circular de Carris

da Bahia, e em agosto de 1981 ocorreu o “quebra-quebra” contra o aumento

da tarifa, deixando um saldo de três mortos, dezenas de feridos e 600

ônibus danificados. Exemplos como esses não faltam na história de outras

cidades do país.

Entretanto, nos últimos anos o desgaste do atual modelo tem gerado grandes manifestações. Não seria justo deixar de citar a histórica Revolta da Catraca, um evento que sem dúvida nenhuma marcou a história de luta por transporte.

Foi a partir da vitória do povo organizado de Florianópolis em 2004 – ano da primeira revolta da catraca, quando centenas de pessoas saíram às ruas para impor a revogação do aumento das tarifas decretado naquele ano.

Na esteira desse processo que o MPL se formou, especificamente, após a segunda revolta da catraca, igualmente grandiosa. O exemplo vitorioso de Florianópolis ecoou pelo país dando fôlego e animando a luta por todo Brasil, e ainda, demonstrando a importância de dois elementos: a espontaneidade das massas e a necessidade da (auto)organização popular, que complementam uma à outra.

Em diversos locais onde a pauta se restringia à gratuidade do transporte coletivo para estudantes, passou a inserir a sociedade civil como um todo. É nesta mesma conjuntura que se iniciaram, em algumas localidades, as reivindicações ao projeto Tarifa Zero (projeto de gratuidade irrestrita implantado de 10 de julho a 31 de dezembro de 1991 em São Paulo).

2. Histórico e especificidades de Curitiba

O histórico de planejamento de Curitiba já vem carregado de posição excludente. O princípio do Plano Diretor de 66 foi agregar valor ao já valorizado, e assim, com a ajuda de especialistas técnicos executaram-se as mais importantes mudanças nas feições do que viria a ser a “cidade modelo”.

Na década de 1970, o Paraná já havia sofrido uma profunda e irreversível transformação em sua área rural, com a introdução da maquinaria agrícola e a consequente expulsão de amplos contingentes populacionais do campo para a cidade, sendo que Curitiba e a região metropolitana foram as regiões que mais receberam este contingente.

Concomitantemente a este fato, acontece um crescente processo de periferização e favelização. Somente em Curitiba, entre os anos de 1970 e 1980, a população subiu de 609.026 para 1.024.975 habitantes (NEVES, 2006, p. 38). Enquanto isso, surge a proposta da criação de um distrito industrial na capital paranaense, que visa justamente à incorporação desse excedente populacional. O plano preliminar de transporte de massa foi concluído em 1969 iniciado com a instalação dos ônibus expressos que circulam em canaletas exclusivas, ladeado por duas vias de tráfego lento. O objetivo era otimizar o sistema de transporte coletivo, tendo em vista a necessidade de deslocamento da força de trabalho entre os pontos da cidade. Que o leitor desculpe a mediocridade da metáfora, mas o rebanho estava dado, faltavam as condições para seu pastoreio.

Aqui já se torna patente um aspecto: a insuficiência do planejamento urbano em curso neste período, pois este quadro de migração agravava a questão urbana, uma vez que as políticas públicas já não respondiam ao processo avassalador de modernização da agricultura paranaense.

Ainda no caso curitibano de planejamento verificou-se uma inversão do padrão brasileiro de urbanização, pois ao invés de os executores se arrogarem a postura de planejadores (com vistas ao capital simbólico que poderiam obter com o direcionamento das obras) (BOURDIEU, 2002, passim), foram os planejadores que passaram, eles próprios, a assumirem o papel de executores.

Isto marca um movimento intra-classe dos administradores, além de demonstrar uma especificidade do arranjo político local: a vitória dos gestores do urbanismo, apoiados pela burguesia local, sobre os gestores da política, onde o planejamento técnico da cidade saiu-se vitorioso sobre a necessidade de se ordenar a cidade sob as necessidades de uma clientela política existente, marcando um maior elitismo e autoritarismo na concepção sobre a política local, tendo em vista que a argumentação técnica é apanágio de uma classe específica, que realiza seu poder somente em favor da exploração capitalista.

        Tal se deu de forma manifesta no caso da implantação do sistema de ônibus expressos. O IPPUC assumiu desde o início e de maneira aberta a tarefa de gerenciar a implantação do novo sistema, deslocando dessa função o Departamento de Serviços Públicos (que, entre outras coisas, cuidava de limpeza pública, iluminação, cemitério e ônibus). Dessa forma, chegou-se à situação curiosa de um órgão – outrora exclusivamente – de planejamento que assumiu a condição de gerenciador de frota de ônibus. De maneira velada o IPPUC se envolveu também de forma permanente com a execução e controle de obras e projetos, notadamente os ligados ao plano das vias estruturais, áreas de lazer, etc (OLIVEIRA, 2000, p. 102).

Apesar da enorme importância do setor, em 1981, existiam em Curitiba apenas 9 empresas de transporte coletivo.

A explicação disto se dá em processo. A exploração do serviço público de transporte coletivo de Curitiba foi viabilizada através de diversos contratos de concessão, entendimentos amigáveis que vão desde rescisões contratuais a mudanças contratuais feitas sem concorrência pública realizados entre a Prefeitura Municipal de Curitiba e as empresas de transporte coletivo do período anterior a 1962

Os empresários ganharam o instrumento legal para manterem a oligopolização do mercado, ou seja, manter a divisão da cidade em áreas para a exploração de poucas empresas; podendo até mesmo elaborar as planilhas de custo tarifários

Todas estas considerações levam a salientarem-se fatores que se encadeiam e se complementam, pois:

1º O modelo de transporte coletivo possibilita o ordenamento populacional dentro do espaço geográfico da cidade, garantindo o estabelecimento de massas proletárias nas periferias, ao viabilizar seu transporte aos locais de trabalho.

2º Garante fatias de mercado a todas as empresas, que passam a não competirem entre si e a pressionarem o poder público por mais privilégios, gerando um negócio certo, livre dos problemas da economia de mercado.

3º Em última instância, viabiliza o próprio mito da cidade modelo, na medida em que garante que a pobreza fique afastada da região onde o plano diretor foi implementado (ficando relegada a região sul de Curitiba e a região metropolitana), dando os ares de “capital social” ou “cidade modelo”, tão propalada pela elite dirigente local.

Contudo, como a exploração capitalista não cessa, a questão é somente resolvida de modo aparente, pois só é tocada em um nível superficial.

A própria taxa de extração de lucro a partir do trabalho explorado é ampliada, na medida em que parte proporcionalmente superior dos salários é canalizada ao custeio da mobilidade urbana. É aqui, contra esta situação, que surgem os setores organizados da população.

2.1 Os movimentos populares na “cidade modelo”

A prorrogação dos contratos em 1981, somada à composição do Conselho Municipal de Transportes, numa conjuntura caracterizada pela administração centralizada e autoritária, fez com que o Movimento Popular se organizasse, partindo para a denúncia contra essa situação de irregularidade nos aumentos constantes e abusivos das tarifas.

Durante toda a década de 1980 e início dos anos 1990, observamos dois movimentos que acabaram ampliando o comprometimento do salário mínimo no gasto com transporte coletivo: a desvalorização real do salário mínimo e o aumento das tarifas (acima ainda dos índices inflacionários).

A pressão popular aumentava, e a situação foi se agravando, quando já na década de 1990 o governo federal implementou o vale transporte (comprometendo um máximo de 6% a renda do trabalhador com transporte) como forma de amenizar a elevação deste comprometimento.

Neste mesmo período realiza-se o primeiro mandado de Roberto Requião frente ao governo do estado, que acaba por inserir quadros dos movimentos sociais dentro do governo, desarticulando ainda mais as lutas.

Desta forma, resolveu-se dois problemas simultaneamente: a pressão dos trabalhadores, que teve seu movimento desarticulado, e a manutenção das elevadas taxas de lucro das empresas de transporte coletivo.

Porém a medida do vale transporte, realizada em nível nacional, aponta de antemão que o problema do transporte coletivo, e sua oligopolização, ultrapassam os limites da cidade modelo.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000, com o desmantelamento das possíveis resistências e a generalização da prática do vale transporte, as empresas de ônibus viram ainda uma nova oportunidade de aumentarem seus rendimentos.

Contudo tal medida não contemplou a todos os setores do empresariado, o que os fazem engrossar o coro dos que insistem no desmantelamento do precário estado bem estar social. A esta política chama-se neo-liberalismo, que surge com vistas à desresponsabilizar ao todo a classe capitalista sobre a eventual precarização das condições de vida da classe trabalhadora.

Como o presente artigo se limita à questão dos transportes, precisamente neste nó histórico é que se coloca o Movimento Passe Livre, pois propomos como alternativa a este modelo de transporte coletivo, a ampla e irrestrita desmercantilização deste sistema, como única forma de se viabilizar condições dignas àqueles que já estão social e geograficamente segregados da cidade modelo.

O Movimento PASSE LIVRE surgiu das ruas e nas ruas ocorre maior parte de sua atuação. A organização se dá de maneira autônoma, apartidária, pluralista e horizontal, atua através de frente ampla, somando as convergências e respeitando as diferenças entra as forças que o constituem, busca trabalhar em rede junto a outros movimentos. Os membros do MPL não respondem nem mesmo, subsidiariamente, pelas obrigações contraídas. Não acumulam cargos e não reconhecem hierarquia interna. O processo decisório se faz mediante assembléia ou reuniões ordinárias e extraordinárias, onde a todos os participantes é garantido o direito de voz e de proposição.

Sabemos que esse é somente um passo à construção de um mundo onde todos possam levar suas vidas de forma digna, sendo, no entanto, que a importância desta luta refere-se mais pelo o que ela ensina do que ela possivelmente viabilizaria.

Portanto, se de um lado temos os técnicos do transporte debruçado sobre o que chamam de crise de financiamento, cujo caráter é estrutural, do outro, preocupado em resolver a crise de mobilidade da população, alijado do direito à cidade, tem-se a proposta do Passe Livre.

Ao tratarmos a crise de mobilidade como produto da crise de financiamento, não enxergamos a chave do problema: o controle privado e a lógica mercantil sobre o direito de ir e vir das pessoas. Enquanto essa realidade não for transformada, as lutas sociais pelo transporte não tardarão em crescer.














3. A proposta do MPL de Curitiba

Uma das propostas do núcleo autônomo de Curitiba é a oneração progressiva daqueles setores que mais saem beneficiados com o atual sistema: o empresariado do transporte coletivo.

Defendemos a autonomização da vida tanto do usuário quanto dos trabalhadores do transporte coletivo em geral e na busca pela verdadeira distribuição de renda. Através da luta proletária e suas conquistas históricas empenhamos nossos esforços a fim de construir uma realidade onde o capital não mais seja o regente maior, mas que a valoração da vida humana esteja em primeiro plano.

Como alternativa a médio prazo sugerimos introduzir, à luta pelo transporte público, a pauta pela municipalização do transporte coletivo para que se possa instituir o programa do Tarifa Zero, que sem o controle do município sobre a frota pública, seria um grande negócio aos empresários do transporte coletivo que receberiam mesmo se não houvesse nenhum passageiro – risco zero.

A municipalização deriva de recursos do imposto progressivo sobre propriedades grandes e caras (mansões de luxo, mega apartamentos, Ferrari, iates, grandes terrenos...), publicidade nos pontos de ônibus (clear channel) e nos próprios ônibus, assim, o município adquiri uma frota pública, gerencia e aplica o projeto Tarifa Zero desmercantilizando o transporte de massa nas cidades.

É um absurdo que para chegar na biblioteca pública, escola pública, posto de saúde público dependemos de empresas que retaxam um serviço já previsto pela constituição sendo público, como é o caso do transporte coletivo. É preciso focarmos a luta pelo direito à cidade com acesso total e irrestrito de todo e qualquer cidadão, pois só assim teremos cidades verdadeiramente sociais.


Nota:

[1] Para entender melhor a oposição entre “crise de financiamento” e

“crise de mobilidade”, ver o artigo de Manolo “Transporte coletivo urbano:

crise de financiamento vs. crise de mobilidade”, disponível em

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/02/372298.shtml.

fontes:

http://passapalavra.info/?p=8232

http://tarifazero.org/

2 comentários:

Unknown disse...

Como forma de financiar o "tarifa zero", sugiro o taxamento do transporte individual que circula pela região central da cidade.

marcos paulo disse...

acho importante se trabalhar com planfetagem, divulgando os ideais e convocando a população usuária à se revoltar contra estes empresário exploradores. Pois aqui em teresina, através de um exclusimamente de estuandes, após uma semana de protestos.. conseguimos pelo menos até suspender o aumento da passagem de onibus... a luta continua.. o problema é os 90% de usuários não participam destes movimentos, daí a nossa conscientização publicitária destas reivindicações e a introjeção deste espírito revoluciomário no sentido de combater o sistema explorador de quem pode menos