sábado, abril 15, 2006

Nossa concepção de transporte coletivo

Por Marcelo Pomar

http://marcelopomar.blog.uol.com.br/arch2006-01-15_2006-01-21.html



Procure imaginar sua cidade durante um mês sem ônibus, ou qualquer similar para o transporte coletivo. Haveria um colapso, empresas entrariam em falência, escolas e universidades funcionariam de forma precária, enfim, a dinâmica social sofreria uma alteração substancial.

Nas últimas décadas o Brasil tem vivido um intenso processo de urbanização. A imensa concentração da terra, entre outros fatores, fez com que setores expressivos do campesinato abandonassem suas raízes rurais para viver o sonho de emprego e dinheiro, vida melhor nas grandes cidades. Esse inchaço das cidades, nos últimos anos em especial, ajudou a provocar nas metrópoles o fenômeno da conurbação. O crescimento de cidades próximas fez com que elas se tornassem grandes conglomerados humanos, com fronteiras meramente formais, e permanente relação entre as pessoas desses municípios próximos.

Numa configuração dessa, de grandes centros urbanos, grandes concentrações humanas, e profunda desigualdade social – o Brasil só perde para Serra Leoa no quesito distribuição de renda –, o transporte coletivo, ou seja, o instrumento por excelência de locomoção diária de milhões de pessoas nas cidades, não pode ser visto como uma questão qualquer. Deve ser visto como um serviço público essencial, tal qual a educação e a saúde.

Vale dizer que o transporte coletivo é a primeira etapa da venda da força de trabalho. Sem o transporte coletivo, setores massivos da sociedade que só possuem sua força de trabalho para sobreviver, não teriam como chegar aos locais de produção e circulação das mercadorias. Não teriam como participar da vida social produtiva. São excluídos da sociedade. Isso sem falarmos de outras questões essenciais para o desenvolvimento intelectual da vida, como é o caso do acesso à cultura, ao lazer, à arte. Hoje, segundo dados oficiais do governo, 37 milhões de pessoas não usam transporte coletivo em virtude do preço de suas tarifas.

A despeito da importância toda que representa o transporte coletivo urbano, sobretudo nas sociedades modernas, esse setor fundamental na vida de milhões de pessoas está na mão de poucos grupos empresarias, na maioria dos casos oligárquicos, baseados na família, na propriedade e na tradição de determinadas cidades. E nessa condição, evidentemente, esses grupos não têm outra pauta que não seja a de lucrar com o transporte coletivo. Ou seja, o transporte coletivo é visto como um grande mercado, uma fonte de apropriação de fatias gordas do orçamento das famílias, uma fonte de poder econômico e político.

Essa é a contradição fundamental que apresenta nesse momento seus graus de esgotamento. O último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta dados que demonstram que o transporte coletivo já o terceiro item de gasto no orçamento das famílias,e dependendo do número de filhos, o segundo.

Os empresários se queixam da alta do preço do petróleo, da falta de subsídio público, do alto número de impostos que devem pagar ao Estado, das gratuidades e descontos conquistados por estudantes e idosos, etc e tal, que segundo eles geram tarifas altas e insatisfação popular. Mantêm um séqüito de técnicos prontos para a qualquer momento dar explicações sobre planilhas, números e estatísticas, onde nunca constam os valores do lucro mensal dos empresários. Ainda não conseguiram perceber que o problema é de natureza política, de concepção de transporte coletivo.

O problema é a contradição profunda entre a necessidade de se ter um transporte coletivo voltado para os interesses públicos e da coletividade, do desenvolvimento social, e um transporte coletivo que serve para o enriquecimento de algumas dúzias de famílias brasileiras proprietárias de empresas de ônibus. Essa contradição só se resolverá pela eliminação da segunda perspectiva, ou pelo aleijamento permanente e progressivo de setores expressivos da sociedade do direito de se locomover utilizando transporte coletivo dentro das grandes cidades. O direito de ir e vir, consagrado somente pela Constituição de 1988 – até então vigorava o “crime de vadiagem” – hoje é atacado pela política tarifária praticada pelos empresários, com a anuência do Estado burguês.

Isso ajuda a explicar a Revolta do Buzú, ocorrida na capital baiana em agosto de 2003, as duas edições da Revolta da Catraca em 2004 e 2005 em Florianópolis, e a onda de revoltas que tem tomado conta de várias cidades importantes Brasil, em torno da questão do transporte coletivo, sobretudo em resistência aos aumentos de tarifas. Criciúma, Uberlândia, Vitória, Aracajú, Fortaleza, Guaíba, são alguns exemplos de que a crise da atual concepção política de transporte coletivo está posta, e o MPL quer contribuir no debate para sua superação.

Do nosso ponto de vista, o transporte coletivo deve ser retirado das mãos da iniciativa privada, como fator fundamental para superar a pauta da lucratividade, que é a questão essência que exclui milhões de pessoas do transporte. O transporte deve ser gerido pelo poder público, voltado para os interesses da coletividade, e pautado numa outra forma de financiamento. Hoje o transporte coletivo é único “serviço público” que é integralmente arcado pelos seus usuários. Cabe dizer que a grande maioria dos usuário(a)s dos ônibus estão na condição de usuários não porque gostam, mas por necessidade. Precisam chegar ao local de trabalho, procurar emprego, estudar, etc. E isto beneficia não quem faz uso do transporte, mas quem faz uso dessa força de trabalho diariamente para produzir e fazer circular as riquezas. Ou seja, é preciso pensar numa nova forma de tributação que onere os setores que verdadeiramente se beneficiam do funcionamento diário do transporte coletivo, e não os usuários. Os setores que se beneficiam são os grandes industriais, as grandes empresas de comércio, os detentores dos grandes meios de produção e de circulação de mercadorias.

A inversão da lógica “do paga quem usa, para o paga quem se beneficia” é um instrumento importante de democratização do acesso ao transporte coletivo. Mas não é o único. Por exemplo, a cobrança de impostos progressivos sobre os setores mais ricos da sociedade, que fazem utilização das vias públicas em caráter praticamente particular – com seus carros importados utilizados por uma, duas ou três pessoas – sem que paguem por isso o mesmo que os usuários pagam por fazer a utilização em caráter coletivo.

É preciso superar o caráter elitista do transporte coletivo, e enxerga-lo de vez por todas como um instrumento fundamental para o acesso à civilização burguesa. Só um país que conseguiu aliar durante décadas liberalismo com escravidão, e desenvolvimento industrial com latifúndio, para possuir um transporte chamado “público e coletivo”, e que ao mesmo tempo é instrumento de exclusão social e enriquecimento inescrupuloso de famílias atrasadas e reacionárias.

Com os impostos que o povo brasileiro paga – um dos maiores do mundo –, com o que pagamos de divida externa aos cofres do FMI, com a distribuição esdrúxula de renda que possuímos, não há dúvidas de que é possível pensar num transporte coletivo público, gratuito e de qualidade, exatamente como deveriam ser a educação e a saúde. O que falta é determinação política das classes dirigentes, associadas aos interesses dos empresários do transporte, e muitas vezes financiadas por eles. Determinação política que o Movimento Passe Livre tem de sobra. Determinação política de ajudar a organizar a luta do povo contra a exploração do transporte.

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